Caminhões do Exército brasileiro e veículos zero quilômetro, que sequer foram emplacados, têm sido tem sido usados para a clonagem de carros por quadrilhas de todo o país. O esquema foi revelado pela Delegacia de Roubo de Veículos do Rio Grande do Sul, conforme reportagem exibida pelo Fantástico na noite de domingo (11) (confira no vídeo acima).

Na semana passada, uma operação realizada em 15 cidades resultou na prisão de 13 pessoas e na localização de 26 caminhões clonados. Os bastidores do trabalho da polícia foram acompanhados por três meses.

A investigação teve início com uma apuração solitária realizada por um agricultor de São Lourenço do Sul, cidade localizada ao Sul do estado gaúcho, após o roubo de seu caminhão na ERS-118, em Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Ele buscou informações em postos de combustíveis e ouviu colegas motoristas, até descobrir um galpão no interior da cidade de Canguçu, também no Sul. É lá que estava o veículo roubado.

Caminhões eram clonados com chassis do Exército (Foto: Giovani Grizotti/RBS TV)
Caminhões eram clonados com chassis do Exército (Foto: Giovani Grizotti/RBS TV)

“Fiz de conta que ia comprar um caminhão. Aí, perguntava para um, perguntava pelo outro. Numa certa revenda, lá todo mundo suspeitava. Falava: ‘Olha, aquele cara é perigoso’. Fui atrás desse cara, fui investigar”, explicou o caminhoneiro.

Com a informação, a polícia passou a investigar o suspeito pelo envolvimento no furto. Ingo Ramson Abraham, conhecido como Tio Pipa, é dono de uma loja de caminhões localizada na cidade de Pelotas. Ele foi uma das pessoas presas na operação realizada pela polícia na semana passada, juntamente com a mulher e um funcionário. Ele, porém, negou as acusações.

Ingo teria negociado a maioria dos 50 caminhões clonados que rodam no Rio Grande do Sul. No entanto, a estimativa é que o número total de clones rodando pelo Brasil chegue a 1 mil veículos.

De acordo com o delegado Marco Guns, um dos responsáveis pela apuração, os bandidos tinham acesso à numeração de chassis dos caminhões do Exército, que não eram emplacados. De posse dessas informações, os suspeitos roubavam veículos similares e remarcavam os chassis com a numeração dos caminhões militares.

Ao realizar esse tipo de clonagem, os criminosos corriam menos riscos, uma vez que não existe veículo similar e legal rodando por ruas e estradas, o que dificulta a descoberta da fraude.

“Com isso, este veículo subtraído em roubo ou furto andará, transitará pelo Brasil normalmente, regularmente, uma vez que não haverá no país, um veículo idêntico àquele em trânsito. Porque parte desses veículos estarão em unidades do Exército Brasileiro”, disse o delegado Guns, “fechado nas unidades”, completou.

Caminhão do Exército de Fortaleza clonado  (Foto: RBS TV/Reprodução)
Caminhão do Exército de Fortaleza clonado (Foto: RBS TV/Reprodução)
A participação de funcionários do Centro de Registro de Veículos (CRVAs) no golpe é investigada pela polícia. Entre os veículos clonados registrados pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran) estava o caminhão do agricultor.

“Foi vistoriado. Levei ele lá (no CRVA) e (o caminhão) passou na vistoria. Se ele (vistoriador) liberou ali, como eu vou saber se tem coisa errada nele ou não”, afirma o agricultor, cujo caminhão usava número de chassis de um veículo do Exército de Fortaleza.

O Comando do Exército informou ter realizado uma investigação interna, sem identificar o envolvimento de militares no vazamento da numeração dos chassis.

Uma das linhas de investigação é a de que os dados tenham sido vazados a partir do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), órgão ligado ao Ministério das Cidades, que gerencia o sistema de registro de veículos de todo o Brasil. Por meio de nota, a pasta diz que não existem evidências de que esteja ocorrendo algum vazamento.

“É uma fraude extremamente especializada. Trabalho há 13 anos na área criminal, nunca tinha visto coisa igual”, afirma o delegado Adriano Nonnenmacher, que participa das investigações.

Fraudes em outros estados
O esquema de clonagem era praticado em outros estados, usando veículos que eram exportados e zero quilômetro, destinados ao mercado interno.

Uma apuração interna realizada pela montadora Toyota descobriu a existência de clones de uma frota de 564 caminhonetes Hilux, que sequer tinham sido emplacadas. Parte foi destinada para o Exército Brasileiro, e  o restante foi encaminhado para concessionárias, empresas e prefeituras de todo o país.

Três caminhonetes foram repassadas a revendas e a uma empresa de engenharia do Rio Grande do Sul. Mas os veículos não puderam ser emplacados porque o número do chassis tinha sido utilizado para esquentar veículos similares que haviam sido roubados, e depois registrados nos estados do Paraná, Bahia e Pará. Os veículos foram trocados por novos.

A montadora entrou na Justiça com uma ação que pede que o Denatran bloqueie os chassis da frota clonada, e alega a existência de fraude na Base de Dados Nacional (Bin), que estaria possibilitando o acesso dos criminosos aos números.

A mesma suspeita foi apresentada ao Ministério Público do Rio de Janeiro pela montadora Mitsubishi, que comunicou a clonagem de uma frota de 221 caminhonetes Triton, exportadas para a África e Argentina, e que não foram emplacadas no Brasil.

“A gente acredita que funcionários do Denatran tenham repassado a essas quadrilhas a numeração dos chassis, porque somente eles e os funcionários da montadores possuem acesso a essa informação”, afirma a delegada Renata Araújo, da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

A suspeita de que o vazamento dos dados pode estar ocorrendo a partir do banco de dados do Denatran é compartilhada pelo presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Antônio Megale.

“A simples obtenção do número do chassi não é suficiente para você permitir o emplacamento. É importante que você tenha o casamento da base, que está no Denatran, com o número de chassi, que é o pré-cadastro chamado. Então, essa informação vazou de alguma forma e isso precisa ser investigado”, afirma Megale.

Por meio de nota, o Denatran afirma não existir evidências de que possa ser o foco do vazamento, uma vez que os Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans) e montadoras também teriam acesso à base de dados.

O Denatran se negou a atender o pedido das montadoras de bloquear os chassis dos clones, alegando que essa é uma atribuição dos Detrans.

Ainda de acordo com o Departamento Nacional de Trânsito, uma circular foi editada em agosto, determinando que os estados coloquem restrição nos dos documentos dos veículos clonados, sem que forem descobertos.