A matriz de transporte da produção e circulação de mercadorias no Brasil concentra-se na modalidade rodoviária. Daí a busca de maior eficiência nessa espécie de transporte, crucial para a retomada do crescimento econômico brasileiro, depender do aperfeiçoamento e da ampliação das estruturas existentes.
Dentre as preocupações relativas ao transporte rodoviário de carga, duas são mais intensas na atualidade: (i) as tão decantadas deficiências estruturais da malha, somente minimizáveis por novos investimentos e boa gestão; e (ii) o grande aumento da incidência do roubo de carga a mão armada, inclusive nos centros urbanos, cuja diminuição implica em investimentos na segurança pública.
Não é desprezível o contributo do roubo de cargas ao aumento de demandas levadas ao Poder Judiciário e vários são os ramos do direito preocupados com emanações dessa espécie de ilícito (direito penal, direito do trabalho etc.). Contudo, cumpre no momento fixar-se em aspectos do direito privado, reforçando assunto anteriormente tratado.[1], em que as seguradoras, por meio da ação de regresso e após receber o prêmio do segurado, buscavam transferir o seu risco de seu negócio às transportadoras. E de outro lado, estas empresas transportadoras sustentavam haver caso fortuito e força maior, por ser o roubo de carga fato desconexo e externo ao contrato de transporte e, portanto, excludente de responsabilidade civil.
Nunca é demais lembrar que a responsabilidade civil atribui obrigação ao causador de ato ilícito de reparar o prejuízo sofrido pela vítima. Quando uma das partes contratantes descumprir uma obrigação imposta por norma contratual, nasce para o credor o direito de exigir a indenização devida, por meio de uma ação de responsabilidade civil por perdas e danos advindos do inadimplemento. No tocante a um contrato de transporte de coisas, aquele em que um sujeito se obriga, mediante retribuição, a transportar determinado objeto, o Código Civil (artigos 743 e seguintes) destaca que a responsabilidade do transportador, limitada ao valor consignado na nota de conhecimento, começa no momento em que ele recebem a coisa.
Assim, via de regra, mas não absolutamente, a integridade da mercadoria transportada é de responsabilidade do transportador, pois sua obrigação é de resultado; razão pela qual a entrega, em perfeito estado, configura a adimplência da obrigação contratual assumida.
Como se verificou no artigo acima citado, amplo é o tratamento legislativo e jurisprudencial em defesa das transportadoras na hipótese de roubo de carga. O artigo 753 do Código Civil é taxativo ao disciplinar que, caso o transporte não possa ser realizado, caberá ao transportador zelar pela coisa, por cujo perecimento ou deterioração responderá, exceto na hipótese de força maior. A mesma disposição se repete na Lei 9.611/98 (Lei do Transporte Multimodal de Cargas), artigo 16, inciso V e na Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Ainda para fundamentar o tema, é possível invocar os seguintes dispositivos legais que disciplinam o transporte de bens: o artigo 14, §3º, inciso II, artigo 102 do Código Comercial, estabelece que, durante o transporte, corre por conta do dono o risco que as fazendas sofrerem, proveniente de vício próprio, força maior ou caso fortuito. O artigo 10 do Decreto 61.867/67 estabelece que “as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado que se incumbirem do transporte de carga, são obrigadas a contratar seguro de responsabilidade civil em garantia das perdas e danos sobrevindos à carga.
Importa destacar que o Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que o roubo constitui força maior capaz de isentar de responsabilidade as transportadoras, diante do emprego de todas as precauções e cautelas possíveis por parte desta.
Nesse mesmo sentido caminhou o recente julgado Recurso Especial 1.660.163/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, publicado em 9 de março de 2018, esclarecendo e cristalizando anterior jurisprudência da corte no sentido de que o transportador responsabiliza-se pela perda ou por danos sofridos pela mercadoria transportada, eximindo-se dessa responsabilidade somente nas situações em que a perda ou dano ocorreu em razão de força maior ou vício da própria coisa.
Segundo o Colendo Tribunal Superior, “o roubo, por ser equiparado ao fortuito externo, em regra, elide a responsabilidade do transportador, pois exclui o nexo de causalidade, extrapolando os limites de suas obrigações, visto que a segurança é dever do Estado”.
De acordo com referida decisão, “exemplo típico de força maior é o roubo de mercadoria com o emprego de arma de fogo (…)” Por essa razão, se o roubo de carga foi praticado mediante ameaça exercida com arma de fogo, caracteriza caso fortuito ou força maior e, em tal hipótese, estaria afastada a responsabilidade da transportadora pelo incidente” O roubo de mercadoria transportada é fato desconexo com o contrato de transporte e, sendo inevitável face as cautelas praticadas pela transportadora e exclui a responsabilidade dos danos causados, por ser imprevisível e estranho à vontade dos contratantes.
Não foi por acaso que a ministra Nancy Andrighi relembrou, em seu voto acima referido, o entendimento do STJ no julgamento do Recurso Especial 927.148/SP, de 4 de outubro de 2010, em que foi asseverado não ser “razoável exigir que os prestadores de serviço de transporte de carga alcancem absoluta segurança contra roubos, uma vez que segurança pública é dever do Estado. Igualmente, não há imposição legal obrigando as empresas transportadoras a contratarem escoltas ou rastreamento de caminhão e, sem parecer técnico especializado, dadas as circunstâncias dos assaltos, nem sequer é possível presumir se, no caso, a escolta armada, por exemplo, seria eficaz para afastar o risco ou se, pelo contrário, agravá-lo-ia pelo caráter ostensivo do aparato”.
Nesse sentido, desde o julgamento do Recurso Especial 435.865/RJ, pela Segunda Seção, ficou pacificado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que o roubo de carga constitui motivo de força maior capaz de isentar a responsabilidade da transportadora. No julgamento do Recurso Especial 927.148/SP de 4 de outubro de 2011, a 4 ª turma do STJ asseverou não ser “razoável exigir que os prestadores de serviço de transporte de cargas alcancem absoluta segurança contra roubos, uma vez que segurança pública é dever do Estado”.
Aprofundando a tese, a ministra relatora Nancy Andrighi, transcreveu literalmente lição doutrinária de Sérgio Cavalieri Filho, importante por seu efeito elucidativo: “informam a responsabilidade do transportador de mercadorias (ou carga) os mesmos princípios gerais do contrato de transporte de pessoas. Também aqui a obrigação do transportador é de fim, de resultado, e não apenas de meio. Ele tem que entregar a mercadoria, em seu destino, no estado em que a recebeu. Se recebeu a mercadoria sem ressalva, forma-se a presunção de que recebeu em perfeito estado, e assim deverá entregá-la. Inicia-se a responsabilidade do transportador com o recebimento da mercadoria e termina com a sua entrega. Durante toda a viagem, responde pelo que acontecer com a mercadoria, inclusive pelo fortuito interno. Só afastarão a sua responsabilidade o fortuito externo (já que, aqui, não tem sentido o fato exclusivo da vítima) e o fato exclusivo de terceiro, normalmente doloso. Têm-se tornado frequentes os assaltos a caminhões, apoderando-se os meliantes não só das mercadorias, mas, também, do veículo. Há verdadeiras quadrilhas organizadas explorando essa nova modalidade de assaltos, muitas vezes até com a participação de policiais. Coerente com a posição assumida quando tratamos dos assaltos a ônibus, entendemos, também aqui, que o fato doloso de terceiro se equipara ao fortuito externo, elidindo a responsabilidade do transportador, porquanto exclui o próprio nexo de causalidade. O transporte, repetimos, não é causa do evento; apenas a sua ocasião. Não cabe ao transportador transformar o caminhão em um tanque de guerra, nem colocar um batalhão de seguranças para cada veículo de sua empresa a circular por todo o país. A segurança pública é dever do Estado”[2].
Em conclusão, o encadeamento dessa série de decisões do STJ solidifica o posicionamento de considerar o roubo como força maior e apto a eximir a transportadora da responsabilidade pela perda da mercadoria roubada mediante ameaça com arma de fogo. Consoante as normas legais próprias e a jurisprudência assente, satisfeito o pagamento integral da indenização ao contratante, a companhia de seguro se buscar transferir para a transportadora os riscos por ela assumidos – pelos quais foi remunerada de acordo com o prêmio por ela fixado, por meio de ação de regresso, não terá sucesso.
Extrai-se que a responsabilidade da transportadora está restrita à prestação adequada do serviço de transporte, de modo que a ocorrência de roubo não tem nexo causal com a atividade empresarial desenvolvida pela transportadora, configurando força maior que exclui a sua responsabilidade. Eventual indenização deve ser suportada por aquele que se vinculou, por meio de contrato específico de seguro e recebimento de prêmio, à garantia e segurança do bem.
[1] Rodas, João Grandino, Seguradoras buscam transferir o seu risco às transportadoras, Revista Eletrônica ConJur